Imaginemos a seguinte situação: um estado concede incentivos fiscais a uma empresa, o que lhe dá o direito de pagar o ICMS com redução de 40% do que seria devido. Esse benefício foi concedido por prazo certo, correspondente a dez anos, e sob condições que foram e permanecem sendo cumpridas pela empresa. É possível o estado reduzir o percentual desse incentivo fiscal durante esse período?
Isso vem ocorrendo em vários Estados brasileiros a partir do Convênio Confaz 42. Esse convênio admitiu que os Estados aprovassem leis visando constituir Fundos de Equilíbrio Fiscal compostos de redução de, no mínimo, 10% dos incentivos fiscais concedidos. Isso pode ocorrer pela redução “na marra” do que havia sido concedido, ou pela “doação” desse montante de forma “espontânea” pelas empresas. Notícias dão conta de que Pernambuco, Bahia e Ceará já aprovaram leis nesse sentido. Projetos de lei tramitam no Rio de Janeiro, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas.
O texto do convênio é um emaranhado de erros, para dizer o mínimo, pois embrulha conceitos básicos de Direito Financeiro, acarreta majoração de carga tributária e cria a mais ampla insegurança e desconfiança no meio empresarial acerca do respeito aos contratos firmados com o poder público e relativamente às normas jurídicas aprovadas. Trata-se de mais uma confusão federativa do Confaz, que ocorre no seio da falência financeira dos Estados por causa de má gestão.
Inegavelmente, trata-se de um procedimento inconstitucional, pois viola o artigo 5º, XXXVI da Carta de 1988, que determina o respeito ao ato jurídico perfeito feito entre o estado e a empresa beneficiária dos incentivos fiscais.
Ato jurídico perfeito, consoante a legislação pátria, é aquele “já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou” (parágrafo 1º, artigo 6º, Lei 4657/42), o que é amparado pela norma constitucional constante do artigo 5º, XXXVI, que estabelece o direito fundamental de respeito ao ato jurídico perfeito, à irretroatividade dos efeitos das leis e ao direito adquirido. Tendo os incentivos fiscais sido concedidos segundo a lei vigente à época, alteração normativa não pode alcançá-los, pois se constituem em atos jurídicos perfeitos.
É claro que se tiverem sido descumpridas as condições da concessão, ou se o prazo do benefício findou, a situação se modifica. Porém, caso nada disso tenha ocorrido, o ato jurídico perfeito deve prevalecer sobre a nova lei, até que seus efeitos se esgotem, obedecido o prazo estabelecido.
É milenar o debate sobre a validade das leis no tempo, conhecido no mundo jurídico como teoria da irretroatividade das leis. Rubens Limongi França, em obra clássica sobre o tema, expõe sua compreensão em diversas civilizações, atravessando os séculos até a contemporaneidade. Trata-se de um debate que se encontra presente no cotidiano das pessoas, que necessitam saber qual norma vigora em determinado período — o que atinge em especial as normas financeiras e tributárias, pois a produção normativa nessas áreas é avassaladora, quase sempre visando o aumento da receita pública.
Clóvis Bevilacqua escreve com precisão acerca da matéria: “O princípio da não retroatividade das normas legislativas, que tem sido um dos pontos mais obscurecidos pela discussão jurídica, afirma simplesmente, não que a lei se referirá, exclusivamente, aos atos futuros, o que equivaleria apenas a mostrar o acordo existente entre a lógica e a legislação, mas que as consequências dos atos realizados no domínio da lei anterior não devem ser atraídas para o império da lei nova, exceto se estiverem em oposição manifesta aos princípios e regras estabelecidas pela nova ordem jurídica”. É necessário assegurar que os atos feitos sob o império da lei anterior não sejam atingidos pela nova lei. Aqui se encontra o desdobramento do ato jurídico perfeito com a irretroatividade das leis. O ato jurídico perfeito gera direito adquirido, cujos efeitos não podem ser atingidos por lei nova; logo, essa lei nova, não pode ter nem efeito retroativo nem efeito imediato sobre as relações jurídicas continuadas, com prazo certo de vigência. Tais normas podem ser aplicadas às novas relações jurídicas, mas não às preexistentes.
Na verdade, a discussão sobre ato jurídico perfeito é um desdobramento da segurança jurídica, que é um dos valores supremos do Estado Democrático de Direito, e em nossa Constituição consta desde seu preâmbulo, quando afirma que os representantes do povo brasileiros, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, a escreveram visando assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Além dessa declaração de princípios, consta no artigo 5º, caput, a garantia da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, declinando o exercício desses direitos nos mais de 70 incisos em que se desdobra esse artigo.
Não fosse suficiente o rol acima mencionado, o parágrafo 2º do artigo 5º ainda consagra uma fórmula aberta que integra outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, o que é conectado ao caput do artigo 150, ao abrir a seção destinada às limitações ao poder de tributar, mencionando outra fórmula integradora, assim redigida: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios…”. Dessa forma, todos os que habitam o território brasileiro, sejam brasileiros ou não, têm consagrada a segurança jurídica no âmbito das relações jusfinanceiras. Essa construção jurídica já foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 939, em que foi declarada inconstitucional uma emenda constitucional que instituía um imposto denominado Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras (IPMF).
No Estado Democrático de Direito, tratar de segurança jurídica implica em falar de três diferentes funções que cumpre o Direito. A função da certeza, a da estabilidade e a da confiabilidade.
Heleno Torres esclarece esses conceitos, ao mencionar que a certeza é atendida pela legalidade e suas variantes formais e materiais, e, dentre outros aspectos, na “determinação dos critérios para efetividade material dos direitos e garantias fundamentais em matéria tributária”. Estabilidade, para o referido autor, é a função da segurança jurídica que “confere previsibilidade a partir da hierarquia e relações de coordenação e subordinação entre competências, princípios e regras jurídicas, previsibilidade e estabilidade das relações”. E a confiabilidade diz respeito “à confiança dos sujeitos na normalidade do sistema, na estabilidade controlada das relações e expectativas de direitos e obrigações e na garantia de concretização de direitos e liberdades fundamentais na aplicação das leis tributárias”.
Assim, é sobre esse substrato de certeza, estabilidade e confiabilidade que deve repousar o Princípio da Segurança Jurídica em um Estado Democrático de Direito, inclusive e em especial nas áreas financeira e tributária. Misabel Derzi menciona que o legislador trabalha no presente, voltado precipuamente para o futuro, motivo pelo qual as normas possuem um efeito prospectivo, e não retroativo. “O legislador está comprometido com o futuro, daí que enuncia, linguisticamente, as normas por meio de conceitos abstratos, mais ou menos determinados, mais ou menos tipificados e em princípios e cláusulas mais ou menos abertos”.
O Supremo Tribunal Federal já julgou esse assunto de forma magistral na ADI 493-DF, no qual foi relator o ministro Moreira Alves, cuja ementa ficou assim lavrada: “Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedentes do STF”.
Esse é o sentido da norma constitucional, consoante preleciona o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal: “Mesmo na interpretação da vontade constitucional originária, a irretroatividade há de ser a regra, e a retroatividade a exceção. Sempre que for possível, incumbe ao exegeta aplicar o direito positivo, de qualquer nível, sem afetar situações jurídicas já definitivamente constituídas. E mais: não há retroatividade tácita. Um preceito constitucional pode retroagir, mas deverá haver texto expresso nesse sentido”.
Enfim, o estado não pode reduzir o valor dos incentivos fiscais anteriormente concedidos, pois deve honrar o compromisso formalizado pelo prazo de sua vigência, sob pena de inconstitucionalidade. Seguindo o exemplo acima, a empresa contou com aquele percentual de 40% de redução de ICMS ao fazer seu projeto econômico, e qualquer modificação nesse percentual, de modo a torná-lo mais oneroso, acarretará um desequilíbrio financeiro que poderá até mesmo inviabilizar o empreendimento.
Afinal, tais incentivos fiscais foram concedidos por razões de política econômica daquele estado, que abriu mão de percentual de sua própria receita direta, seja para evitar que uma determinada empresa (ou segmento econômico) mudasse sua planta industrial para outro estado, ou para sua atração, ou ainda para estimular determinado setor econômico dentro de suas fronteiras. A esse estado é vedado alterar esse percentual no curso do prazo concedido. Pode fazê-lo ao término do prazo, ou em eventuais renovações. Essa vedação alcança os atos do estado, independentemente de quem seja o governador atual, se de apoio ou de oposição àquele que inicialmente concedeu o incentivo fiscal agora atacado.
É irrelevante se tal benefício foi concedido de forma regular, com aprovação do Confaz, ou sem aprovação desse órgão. A relação aqui abordada é bilateral, e não federativa/plurilateral. Majorar o que foi concedido viola o ato jurídico perfeito anteriormente celebrado entre a empresa e o estado, cria um ônus fiscal sem amparo constitucional e rompe com a segurança jurídica, princípio do Estado Democrático de Direito.
O argumento jusfinanceiro de ser para criação de um Fundo de Equilíbrio Fiscal não afasta nenhuma das gravíssimas irregularidades acima apontadas. Aliás, as agrava, pois se trata de uma “nuvem de fumaça jurídica” visando driblar as claríssimas inconstitucionalidades relatadas.
Enfim, também em razão da crise econômica, trata-se de momento errado para aumentar a carga tributária, ainda mais quando feito de forma abusivamente inconstitucional.
As empresas e as associações empresariais — sindicatos, federações e confederações — devem tomar a frente desse problema e enfrentá-lo diretamente, pois, caso contrário, serão obrigadas ao pagamento desse “pedágio do incentivo fiscal”. Para usar uma expressão da minha terra, a qual meu sócio Ricardo Mello sempre repete: os Estados estão buscando uma beirada dos incentivos fiscais anteriormente concedidos. Um troco. O fato é que alguns Estados já começam a cobrar essa beira, esse pedágio ou troco dos incentivos fiscais já concedidos.
Fonte: Consultor Jurídico
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